Os lucros das grandes corporações e a sociedade segregada
“Há quem morra chorando pelos pobres. Eu morrerei denunciando a pobreza”
Bernard Shaw
Parece ser senso comum afirmar que ao longo dos tempos sempre prevaleceu mais desigualdades econômicas e sociais do que a igualdade propriamente dita. A exclusão sempre ocupou mais espaços do que a inclusão. A miséria em que muitos vivem sempre correu em paralelo a riqueza exuberante de alguns outros. Os gastos com supérfluos sempre foram maiores do que os gastos sociais. A fome sempre grassou em algumas regiões, mesmo quando a atividade agrícola, por vezes, em determinados períodos, conhecia excedentes produtivos. À medida em que uns enriquecem, outros são castigados pela extrema pobreza.
Historicamente, a elite dominante, tanto aqui, quanto acolá, sempre ditou regras em benefício próprio, mesmo que isso significasse tirar a vida de muitos. Usando a cruz como símbolo a colonização ibérica, sob a tutela da elite européia, promoveu, por exemplo, o genocídio de milhares de indígenas nas Américas – somente no México foram 35 milhões de mortes, segundo as estimativas mais “otimistas”. Ainda debaixo do nariz da Igreja Católica, sob sua cumplicidade, em conluio com a aristocracia rural brasileira, quase 5 milhões de negros foram trazidos da África ao Brasil como escravos e tratados aqui como animais de carga.
Paradoxos gritantes
Na sociedade moderna, embora atualmente a riqueza seja bem maior do que a pobreza, esse fato não impede a existência do contrassenso de poucos ganharem muito e muitos nada ganharem. Esses paradoxos gritantes estão por toda parte e só fazem com que as desigualdades continuem cada vez mais presentes diante da igualdade que parece se limitar ao onírico. Um quinto da população mundial não hesita em gastar 2 dólares por dia num simples capuccino, enquanto um outro quinto da população não ganha o suficiente para tomar um copo de suco de laranja.
Apenas em 2007, os gastos com cosmésticos no mercado global atingiram a cifra de US$ 270 bilhões. Somente nos Estados Unidos, em 2008, foram gastos US$ 205,6 bilhões em bebidas e fumo e impressionantes US$ 881 bilhões em diversões/entretenimentos. No entanto, a fome fez uma vítima a cada quatro segundos. Na África, apenas em 2008, morreram de malária mais de 3 milhões de pessoas e outros 3,5 milhões de óbitos, também em 2008, ao redor do mundo, se deveu a desnutrição. Nos cinquenta países mais pobres uma em cada 22 mulheres morre ao dar à luz em decorrência de precárias condições de higiene e saúde.
Muita gente sem terra e muita terra sem gente: a segregação brasileira
A concentração de terras não é diferente dessa situação paradoxal acima relatada. A terra, dada por Deus a todos os homens em comum, não são cultivadas em comum. Essas terras ociosas que desconhecem a reforma agrária são maiores do que as áreas produtivas. Somente no Brasil, a título de ilustração, apenas 40 mil grandes proprietários controlam mais de 400 milhões de hectares, o que significa uma média de 10 mil hectares por família. Certamente isso é fruto da herança de mais de quatro séculos de um modelo econômico organizado pela elite brasileira que “dirigiu” a sociedade para produzir produtos agrícolas, a partir da configuração do latifúndio para exportação, em total esquecimento ao mercado doméstico. A pobreza brasileira cresceu então em paralelo aos mais de 400 anos de preferência pelas exportações. Uma das consequências disso está bem presente nos dias de hoje: somos um país com mais de 40 milhões de miseráveis que exporta alimentos e vitaminas.
Nas palavras de Darcy Ribeiro esse modelo exportador dirigido pelo latifúndio apenas “adoçou a boca de europeus”, ao passo que, internamente, criava duas classes sociais antagônicas: a oligarquia rural exportadora (a elite) e os escravos (o trabalho desumano).
Esse erro de segregação é histórico e encontra suas primeiras manifestações desde a colonização do território brasileiro trinta anos após a chegada dos portugueses. Quando os primeiros navegantes portugueses aqui chegaram encontraram os índios. Apenas três décadas depois desse encontro, a partir de 1532, esses mesmos navegantes, transformados em exploradores, fizeram desses índios mera mão de obra escrava.
O tempo passou e a sociedade brasileira continuou dividida; segregada a tal ponto de nunca se fazer coesa em mais de quinhentos anos de história. Pelas bandas de cá, essa segregação colocou de um lado os brancos e lhes ditou os privilégios a que tinham direito; enquanto do outro lado ficaram os negros com seus deveres. Aos pobres, em sua maioria, coube-lhes ocupar a parte da sociedade na figura de trabalhadores – quando há vagas no mercado de trabalho. Do outro lado, coube a minoria rica exercer o mando sob a figura patronal naqueles que vendem a força de trabalho. Ainda sobre a questão da terra, os latifundiários se concentraram de um lado, à medida que iam aglomerando mais e mais hectares, enquanto do outro lado ficou uma massa de sem terras que hoje corre pelo país clamando pela ruptura de um modelo caracterizado por muita gente sem terra e muita terra sem gente.
Quando enfim veio a abolição da escravidão os negros, por falta de opção e de oportunidades, correram para os morros e lá montaram suas vilas residenciais. A exclusão foi grassando e, em pouco tempo, o modelo econômico colocado em prática já atingira plenamente seu objetivo: ser anti-social e usar a massa pobre, sem terra, sem instrução, sem qualificação, apenas como mão de obra barata e dispensável ao bel-prazer dos donos do poder. Nesse ponto, a sociedade brasileira atingira o ápice da segregação. A modernização da sociedade ocorrida à medida que chegavam as empresas foi para poucos, nunca beneficiou a maioria. Hoje produzimos e exportamos aviões, mas 1/3 das residências não tem água encanada. É nesse sentido que Celso Furtado foi preciso ao apontar que “o Brasil nunca se desenvolveu, apenas de modernizou, visto que desenvolvimento verdadeiro só existe quando a população em seu conjunto é beneficiada”.
Esse antagonismo de classes sociais que foi criado no Brasil apenas serviu para evidenciar as diferenças. Quinhentos anos depois de sua origem essas estão ainda muito presentes. De um lado estão os ricos-milionários, de outro, os pobres-miseráveis. Nas palavras de Cristovam Buarque (…) “os primeiros vivem e desfrutam dos prazeres no luxo; os segundos, se esforçam e acotovelam-se para pegar as sobras do lixo. A educação de uns vai até a universidade, a de outros não chega a alfabetização”.
A comercialização de alimentos
Esse modelo de sociedade brasileira segregada em que os privilégios se dão apenas de um lado para poucos, não é “mérito” exclusivo nosso. Várias são as sociedades em que semelhante modelo prevaleceu e ainda prevalece. Apenas nove anos depois da virada do milênio, quando todos esperavam um século XXI mais vistoso e menos desigual, relatório da FAO (Fundo para Agricultura e Alimentos das Nações Unidas), divulgado em junho de 2009, atesta que quase 1 bilhão de seres humanos passam fome no mundo. Enquanto isso, aumentam os lucros das transnacionais ligadas a produção e venda de alimentos. Em 2007, apenas seis grandes corporações (Cargill, do Canadá, ADM, dos EUA, ConAgra e a Bunge, também dos EUA, Noble Group, de Singapura e Marubeni, do Japão) lucraram aproximadamente US$ 6,4 bilhões com a comercialização de alimentos. Em abril de 2008, a Cargill anunciou que os lucros obtidos no comércio de commodities, no primeiro trimestre daquele ano, aumentaram 86% comparado ao mesmo período de 2007. A Bunge, no último trimestre de 2007, apresentou lucro 77% superior ao mesmo período do ano anterior.
Certamente esse é o paradoxo dos paradoxos: enquanto o lucro de meia dúzia de empresas que vendem alimentos é estratosférico o mundo conhece o indecente número de 1 bilhão de famintos e de uma morte a cada quatro segundos sendo que desses óbitos 75% são crianças menores de cinco anos.
Os cinco homens mais ricos do mundo
Se tomarmos apenas os cinco homens mais ricos do mundo (Bill Gates, da Microsoft, com US$ 40 bilhões; Warren Buffet, da Berkshire Hathaway, com US$ 37 bilhões; Carlos Slim, da America Movil, com US$ 35 bilhões; Lawrence Ellison, da Oracle, com US$ 22,5 bilhões e Ingvar Kamprad e família, da Ikea, com US$ 22 bilhões), chegaremos a uma cifra superior a US$ 150 bilhões. Esse montante equivale ao PIB dos 50 países mais pobres.
Nesse mundo caracterizado pela abundância de uns, a indiferença, a injustiça e a desigualdade sociais sepultam por ano, ao redor do mundo, 6 milhões de crianças. Outras 325 milhões de crianças não vão a escola e 250 milhões de meninos e meninas são explorados laboralmente tanto em países em desenvolvimento, quanto nos desenvolvidos. Ainda hoje mais de 3 mil mulheres das antigas repúblicas soviéticas (Lituânia, Letônia e Estônia) são vendidas a cada ano para redes de prostituição na Europa. Na Tanzânia, 500 idosas são assassinadas a cada ano acusadas de atos de bruxarias. A mutilação genital é uma prática tradicional na África subsaariana (os países que não fazem parte do Norte da África) e no Médio Oriente que inclui a amputação do clitóris, o que leva em muitos casos à morte. Dor, hemorragias prolongadas, infecções, infertilidade e morte são na realidade as conseqüências da excisão, afirma a UNICEF (Fundo para as crianças da ONU), frisando que “devido à natureza privada desta imposição, é impossível calcular o número de vítimas mortais”. O fato é que essa estúpida prática de mutilação genital já foi efetuada em mais de 100 milhões de mulheres apenas nos 28 países da África subsaariana.
O maior lucro da história do capitalismo
Diante de um sistema econômico que ignora por completo o ser humano e centra-se, apenas, na acumulação do capital, o lado social sempre foi postergado e posto, dessa forma, em segundo plano. O que interessa são os exorbitantes ganhos, não a qualidade de vida. O que se busca são os lucros; ignora-se o fato de que seis milhões de crianças morrem por ano de fome.
Esse mesmo sistema econômico desleal e desumano sempre viu a natureza apenas como um objeto pronta para ser transformada e explorada; nunca viu a natureza como algo a ser cuidado e protegida. Diante disso, agrava-se a questão ambiental de um lado, enquanto, do outro, o lucro das grandes corporações se avolumam. Enquanto o aquecimento global provocará a destruição do ambiente, exigindo urgente mudanças nos padrões de produção e consumo de energia, a Exxon Mobil – maior petrolífera do mundo – acusou em 2008 o maior lucro da história do capitalismo: 45 bilhões de dólares, com faturamento total no ano de US$ 442,8 bilhões. Como se percebe, de um lado estão os grandes lucros, do outro lado, a perversidade da morte. A riqueza convive assim com a pobreza; a fome com a produção excessiva de alimentos e a vida, com a morte. Segregados por interesses dos mais poderosos, a sociedade moderna, nesses vinte e um séculos, caminha para uma estratificação sem limites, cada vez mais egoísta e mesquinha.
O Autor:
Marcus Eduardo de Oliveira é economista e professor universitário.
Mestre pela USP em Integração da América Latina e Especialista em Política Internacional
Autor do livro “Conversando sobre Economia” (ed. Alínea)
Comentários
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manuel santiago
24/07/2009 - 11:14:22