Nos dias de hoje, uma questão se coloca como crucial na vida do homem moderno: se há o interesse desse em continuar evoluindo, desfrutando de um ambiente mais saudável e fraterno para se viver, tal premissa somente terá sentido quando as gritantes desigualdades sociais e econômicas foram diminuídas substancialmente.

Conquanto, é a esse homem dos dias atuais que cabe a principal tarefa do momento, caso queira, de fato, tornar válida a condição necessária de se habitar um lugar melhor para a continuidade da vida. Essa tarefa consiste em buscar alternativas para pôr fim a maior de todas as perversidades: a fome. Essa chaga atinge 1 bilhão de pessoas e ceifa 40 mil vidas todos os anos, em pontos diferentes da Terra. E por que cabe aos Homens essa tarefa de pôr fim a essa ignomínia? Simplesmente, porque são os Homens (no sentido amplo que esse termo carrega) os únicos responsáveis pela construção das sociedades que não param de apresentar mudanças. “Nós devemos ser a mudança que queremos ver no mundo”, afirmou Gandhi.

E a Economia – enquanto ciência social que também estudo o comportamento do homem moderno – pode ser o começo dessa mudança. Em especial no que toca ao uso do cabedal teórico da economia, uma situação específica precisa ser definida, uma vez que um falso argumento, desde as obras que marcam o início dessa disciplina, insiste em permanecer e se afirmar como válida: não é aumentando a riqueza daqueles que já auferem elevados ganhos que se conseguirá diminuir a pobreza, a miséria e a fome daqueles que tanto carecem de ajuda.

Em outras palavras, essa premissa ressalta que não se pode pensar de forma antecipada nos caminhos que conduzem ao aumento da riqueza, se antes persistirem os modos de se fazer política pública que continue ignorando as possibilidades de se buscar a redução dos índices vexatórios de pobreza em escala mundial. A pobreza está muito próxima de todos nós. Os pobres e a pobreza (relativa e absoluta) estão em todos os cantos. Vejamos essa questão especificamente em termos de América Latina.

Onde estão e quantos são os pobres na América Latina

De acordo com relatório divulgado pelo ONU-Habitat (Programa de Assentamentos Humanos, da ONU) o Brasil é o país mais desigual da América Latina, onde os 10% mais ricos concentram 50,6% da renda. Na outra ponta, os 10% mais pobres ficam com apenas 0,8% da riqueza brasileira. O problema da má distribuição de renda afeta a América Latina como um todo, conclui o relatório. Ainda de acordo com esse documento, os 20% latino-americanos mais ricos concentram 56,9% da riqueza da região. Os 20% mais pobres, por sua vez, recebem apenas 3,5% da renda, o que faz da América Latina a região mais desigual do mundo. “O país com menor desigualdade de renda na América Latina é mais desigual do que qualquer país da OCDE [Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico] e inclusive do que qualquer país do Leste Europeu” atesta o relatório.

O México é o segundo país mais desigual da América Latina, já que os 10% mais ricos da população recebem 42,2% da renda, enquanto os 10% mais pobres ficam com apenas 1,3%. Na Argentina, situada em terceiro lugar, 41,7% da renda está concentrada nas mãos dos 10% mais ricos, enquanto os 10% mais pobres têm apenas 1,1%. A Venezuela é o quarto país mais desigual da região, já que os 10% mais ricos têm 36,8% da renda e os 30% mais ricos controlam 65,1% dos recursos, enquanto os 10% mais pobres sobrevivem com apenas 0,9% da riqueza.

No caso da Colômbia, 49,1% da renda do país vai parar no bolso dos 10% mais ricos, contra 0,9% que fica do lado dos mais pobres. No Chile, 42,5% da renda local está concentrada nas mãos dos 10% mais ricos, enquanto 1,5% dos recursos vai para os mais pobres. Os países menos desiguais da região são Nicarágua, Panamá e Paraguai. Mesmo assim, nos três, a disparidade entre ricos e pobres continua abissal, já que os 10% mais ricos consomem mais de 40% dos recursos. Também consta no referido relatório que a urbanização não contribuiu para diminuir a pobreza na América Latina, já que o número de pessoas na miséria aumentou muito nas últimas décadas, basicamente a partir de 1970. Justamente em 1970, havia 41 milhões de pobres nas cidades da região da América Latina – 25% da população de 40 anos passados. Em 2007, a pobreza aumentou em 4%, considerando os dados de 1970: os pobres em áreas urbanas eram 127 milhões, portanto, 29% da população urbana.

No entanto, a “ONU-Habitat” alertou no relatório que “é nas cidades menores e, certamente, nas áreas rurais da América Latina, onde a população é mais pobre”. Assim, a pobreza rural no Brasil alcança 50,1% da população; na Colômbia, 50,5%; no México, 40,1%; e, no Peru, 69,3%. A grande exceção é o Chile, com um índice de pobreza rural de 12,3% – número inferior inclusive ao das zonas urbanas.

Mais números dessa desigualdade: em 2004, cerca de 980 milhões de pessoas viviam com menos de um dólar por dia nos países em desenvolvimento. Dados do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) mostram que as taxas de mortalidade de bebês e crianças até cinco anos caíram em todo o mundo, mas o progresso foi muito desigual. Quase 11 milhões de crianças ao redor do mundo ainda morrem todos os anos antes de completar cinco anos. A maioria dessas mortes decorre por doenças evitáveis ou tratáveis: doenças respiratórias, diarréia, sarampo e malária.

O fato mais triste é que todos os dias 6,8 mil pessoas são infectadas pelo vírus HIV e 5,7 mil morrem em conseqüência da AIDS – a maioria por falta de prevenção e tratamento. De um tratamento, por sinal, que não é muito custoso. No entanto, os países pobres (os que mais sofrem as chagas da desigualdade) continuam pagando a cada dia o equivalente a US$ 100 milhões em serviço da dívida para os países ricos.

Conquanto, uma vez especificado onde estão e quantos são os pobres de nossa região, cabe retomar ao ponto em que anteriormente focalizamos a ciência econômica como parâmetro de análise um tanto quanto inconsistente no ato de atenuar os focos dessa desigualdade. Há um conceito dominante nas ciências econômicas de que riqueza e pobreza devam ser medidas pelo mesmo padrão, ou seja: o produto interno bruto (PIB) e sua conseqüente renda per capita.

É fundamental, contudo, que se tenha a lucidez conceitual para verificar que crescimento econômico (elevação do PIB) não significa queda da pobreza, até mesmo porque o PIB, visto como forma de medir riqueza trata-se, na essência, de um ledo engano.

Uma vez mais queremos contextualizar aqui a idéia que dá conta que crescimento da economia (elevação do produto) não representa (nunca representou) melhora na qualidade de vida das pessoas. É certo que não se acaba com a pobreza crônica gerando apenas empregos e fazendo com que o produto interno se expanda. Pobreza, entendida nos termos da depreciação de vidas humanas, se acaba, por exemplo, a partir da melhoria substancial nos sistemas de saúde pública. Acaba-se com a pobreza crônica quando a educação é tratada com qualidade, para, assim, poder-se oferecer educação com qualidade. Índices de pobreza (tanto crônica quanto relativa) reduzem-se melhorando, substancialmente, as condições de higiene e alimentando melhor os mais pobres; portanto, atenuar os índices de pobreza passa, indiscutivelmente, ao proporcionar aos mais necessitados as necessárias condições básicas que conduz, na prática, ao bem-estar social.

Dito isso, faz-se producente afirmar que o padrão de crescimento econômico das sociedades modernas não pode ser praticado nos termos que ora temos presenciado, ou seja, sob uma plataforma socialmente perversa. O espetacular crescimento econômico das economias modernas a partir de 1945 tem se dado, por exemplo, sobre o conflito com o meio ambiente e num total desrespeito às condições de vida. O progresso técnico-econômico verificado desde o início do forte crescimento das economias não foi acompanhado de crescimento social. É preciso, todavia, lançar-se um novo olhar para além desse crescimento. Essa atitude, de fazer crescer a economia sem a contrapartida de avançar a questão social, apenas contribui, sobremaneira, para o total desrespeito ao indivíduo, que se vê privado de obter condições dignas de trabalho e, por conseqüência, se vê cada vez mais longe do acesso às possibilidades de melhoria do seu padrão de vida. Toda vez que esse indivíduo é colocado à margem dos benefícios, mais distante fica do acesso aos bens necessários. Assim, a economia contribui apenas para obstaculizar uma melhora na vida daqueles que tanto carecem, ao passo que esse sistema econômico continua, a bel-prazer de alguns poucos ganhadores, privilegiando somente esses que se encontram nos patamares mais elevados da escala social. O crescimento da riqueza, portanto, não faz gerar a diminuição da pobreza.

As palavras do economista indiano Amartya Sen são exemplares a esse respeito: “Não se deve olhar o progresso de uma economia verificando o aumento da riqueza dos que já são ricos, mas na diminuição da pobreza daqueles que são muito pobres”.

A saída pode estar na prática da economia solidária

Conquanto, se realmente desejamos ver edificada uma sociedade melhor do ponto de vista social, inequivocamente outro modelo econômico precisa ser posto à serviço das comunidades mais carentes. Esse outro modelo econômico pode ser a economia solidária.

O modelo de economia solidária que queremos ver ganhar dimensão respeita, antes de tudo, a geração presente, priorizando, valorizando e enaltecendo o ser humano, em lugar de centralizar esforços para a acumulação de capital. Esse novo modelo econômico, solidário e participativo, mais ético e menos mercantil, precisa emergir para assim criar todas as condições necessárias a fim de diminuir a abissal lacuna existente entre o modo de viver dos mais ricos em relação aos mais pobres.

Lembremos, nesse pormenor, que habitamos um mundo em que vinte por cento da Humanidade não hesita em gastar três dólares por dia num simples cappuccino; enquanto, no outro extremo da vida, quase 40% da população mundial “tenta” (sobre) viver com menos de dois dólares por dia. Habitamos um mundo em que para manter uma vaca em pé na Europa central são gastos quatro dólares por animal a cada dia.

No entanto, por não receber nem mesmo dois dólares (menos da metade que uma vaca “recebe” em forma de subsídio) por dia, 3 milhões de pessoas – pobres, famintas e enfermas – morrem por causa de malária todos os anos na África subsaariana.

Não é por outra razão então que a cada semana, a pobreza e suas “conseqüências” matam, somente no continente africano, o mesmo número de pessoas que foram dizimadas pelo tsunami que atingiu o sudeste asiático alguns anos atrás.

Ou mudamos radicalmente essa história perversa ou continuaremos a andar na contramão das condições que estabelecem as relações que moldam a vida. A vida não nos foi dada para que tratássemo-la com menoscabo. A vida nos foi oferecida para promovermos o bem-viver e o viver bem. Cabe a nós – a todos nós – que escapamos da pobreza e da fome, juntarmos forças para a construção da paz duradoura num mundo em que, pelo menos, não haja a sandice da fome, uma vez que os alimentos são produzidos em excesso e, em muitos lugares, chegam até mesmo a estragar e apodrecer em silos. Ao final, desejamos aqui reiterar as palavras de Frei Betto: “Ter escapado da pobreza não é prêmio, é responsabilidade para com aqueles que não tiveram igual sorte”.

*Marcus Eduardo de Oliveira é economista pela Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas de Osasco (FEAO), mestre pela USP e professor de economia da Faculdade de Ciências da Fundação Instituto Tecnológico de Osasco (FAC-FITO) e da Fundação Instituto de Ensino para Osasco (UNIFIEO).

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