Muro de Berlim ou Wall Street? Algumas indicações da teoria econômica
As ideologias são formas alentadoras de ver o mundo, mas sua aplicação aos problemas concretos pode custar caro. O mito de que a ditadura do proletariado forjaria um “novo homem”, livre dos condicionamentos perniciosos determinados pelas relações de produção capitalistas, foi responsável por vários regimes políticos opressores, corruptos, com prisões, torturas e execuções indiscriminadas. A queda do Muro de Berlim foi um marco na desqualificação, pelo menos, do chamado “socialismo real”, hoje restrito a Cuba e Coréia do Norte. O “excesso de Estado” mostrou-se sufocante e desestimulante ao desenvolvimento das potencialidades humanas.
Dezenove anos depois, outro “muro” foi seriamente abalado, Wall Street, agora como consequência de um “excesso de mercado”. O chamado “neoliberalismo”, que tanto tem prejudicado o crescimento econômico e a distribuição de oportunidades entre os países pobres e emergentes, gerou uma crise financeira com efeitos bem reais no mundo desenvolvido. Para os seus defensores, nos países ainda não desenvolvidos o desenvolvimento não tem sido satisfatório porque as reformas liberalizantes não foram suficientes. Os céticos de tal receituário, todavia, têm a seu favor a hipótese que o único processo de desenvolvimento capitalista a ter êxito contando apenas com as forças do mercado foi o da Inglaterra, possivelmente por ter partido na frente.
É impressionante a parcela dos trabalhos acadêmicos de economia, ao menos nas últimas décadas, que trazem entre seus principais resultados recomendações acerca da participação do Estado na economia. No final das contas, resta a impressão de que a participação mais adequada do Estado seria uma questão de crença e estaria baseada em uma determinada concepção de natureza humana, mesmo quando os “crentes” não se dão conta. Num enfoque mais economicista, poderíamos dizer que depende dos “microfundamentos” adotados. Com tal ponto de vista, é mais fácil aceitar que as opiniões mais extremas sobre essa participação, como a “marxista” e a “neoliberal”, se apoiam em microfundamentos bastante toscos.
O que poderia ser mais utópico que todos os seres humanos se tornarem plenamente virtuosos, solidários e construtivos, após a superação do capitalismo, como profetiza o marxismo? Por outro lado, não menos utópica seria uma sociedade constituída de unidades familiares autônomas capazes de sempre fazer as melhores escolhas, como assume o neoliberalismo. É interessante notar que ambos alimentam alta expectativa da natureza humana, de um lado a superação das atitudes destrutivas, tão presentes no comportamento humano em geral, de outro, a faculdade de fazer as escolhas, de forma autônoma e para todos os períodos futuros, que levariam a unidade familiar ao bem-estar total máximo permitido por sua dotação inicial de recursos e habilidades.
O que muitos não sabem é que a própria teoria econômica fornece muitas indicações sobre questão da participação do Estado na economia. A teoria neoclássica argumenta que, sob certas condições, o mercado alocará os recursos de modo a maximizar o bem-estar de todos os agentes, dadas as suas dotações iniciais. Observem que são admitidas duas restrições ao mecanismo de mercado: “sob certas condições” e “dadas suas dotações iniciais”. A primeira seria equivalente ao que, no jargão dos economistas, chama-se “ausência de falhas do mercado”, ao invés de considerar que as falhas estariam nos microfundamentos, os quais, quanto mais próximos do comportamento humano como de fato ele é, melhor funcionam como base para dimensionar a participação mais apropriada do Estado. Nesse sentido, avanços têm sido registrados na teoria econômica, tais como:
• Aplicações da teoria dos jogos, em que os agentes teriam um “comportamento estratégico”, onde cada um leva em conta também o que espera do comportamento dos demais envolvidos. Com isso, a hipótese de otimização individual, sem considerar as possíveis reações dos demais agentes, como assumido pela teoria neoclássica tradicional, seria relaxada.
• Desenvolvimento da economia da informação, onde a hipótese neoclássica de que os agentes têm acesso e processam corretamente todas as informações relevantes para realizar suas escolhas, também passa a ser relaxada.
• Modelos de formação de bolhas, com a hipótese de agentes heterogêneos, como o caso em que os racionais, da teoria neoclássica tradicional, passam a interagir com os chamados “agente exuberantes”, que tendem a exagerar em suas avaliações, otimistas ou pessimistas, como grande parte das pessoas no mundo real.
Tais avanços justificam a atuação do Estado (i) para regular monopólios e cartéis que praticam barreiras à entrada, decorrentes de comportamento estratégico, (ii) para manter sistemas públicos de previdência, em função das limitações dos agentes realizarem otimização intertemporal de longo prazo, e (iii) para regular mercados financeiros e de capitais, minimizando a formação de bolhas que possam ter efeitos sistêmicos perniciosos. Acrescente-se a tais inovações nas justificativas de intervenção, “falhas do mercado” percebidas há mais tempo, como os oligopólios e monopólios naturais, que também mostram a necessidade de regulação pelo Estado.
Quanto à segunda restrição, relativa às dotações iniciais de recursos e habilidades, a teoria econômica também fornece algumas indicações. Para tanto, observe-se que a principal forma de participação do Estado na economia é transferindo, compulsoriamente, recursos entre os agentes. Assim, agentes com recursos excedentes tenderão a ter parte deles apropriada pelo Estado, enquanto agentes com carência de recursos tenderão a se beneficiar da atuação do Estado de forma mais visível. Não é por acaso que os mais ricos em geral preferem menor participação do Estado, e os mais pobres desejam exatamente o inverso. Então, seria possível alguma objetividade nessa questão? Uma solução foi proposta pelo filósofo americano John Rawls, a partir do que chamou de “véu da ignorância”, que seria uma situação hipotética em que os agentes deliberariam sobre a participação adequada do Estado antes de saber as dotações iniciais que teriam.
Então, tais condições possibilitariam uma escolha objetiva, o que tenderia levar à aceitação da participação de Estado para garantir condições mínimas aos agentes com menores dotações iniciais. Esse princípio estaria plenamente ajustável à abordagem neoclássica, tendo sido incorporado com a “Função de bem-estar social hawlsiana”. Nesse contexto, essas “condições mínimas” seriam as suficientes para minimizar as desigualdades de oportunidades, pois mais que disso começaria a ser injusta com os que possuem recursos gerados com esforço e competência próprios, ou transmitidos e recebidos livremente de alguém, como os pais, para passar para outros usufruírem.
Além dessas restrições ao mecanismo de mercado, a teoria econômica dá suporte à participação do Estado com outros propósitos, dos quais se destacariam a manutenção do equilíbrio macroeconômico e a promoção do crescimento econômico. Ainda que alguns economistas discordem, a maioria recomenda um “ativismo” do Estado, tanto conduzindo a política macroeconômica para compatibilizar a demanda agregada com a capacidade produtiva da economia, de modo a condicionar o máximo de emprego dos recursos com estabilidade nos níveis de preços, quanto com políticas para incentivar os investimentos.
Neste último propósito, é interessante notar abordagens totalmente divergentes, com propostas totalmente diferentes, mas que envolvem a participação do Estado. Nesse sentido, vale citar dois trabalhos recentes: (i) Crescimento Clássico e crescimento retardatário, de um de nossos decanos, o estruturalista João Paulo de Almeida Magalhães, defendendo que o Estado direcione os investimentos, tanto públicos quanto privados, para setores e cadeias produtivas em que haja mercado sustentável em evolução; (ii) Desigualdades Regionais no Brasil, de um economista mais ortodoxo, Alexandre Rands Barros, propondo um outro tipo de intervenção do Estado, qual seja, na promoção de investimentos em capital humano como forma de induzir os investimentos em capital físico. Não é objetivo deste artigo entrar no mérito dessas propostas, mas apenas ilustrar que abordagens tão diferentes terminam recomendando a participação do Estado.
Pode-se assumir, então, que a participação adequada do Estado estaria entre a máxima e a mínima. Nessa altura, deve-se ainda descartar a crença de que a corrupção ocorre apenas quando o Estado está envolvido. Também existe corrupção dentro e entre as empresas. Assim como as falhas do mercado, as falhas do Estado precisam ser corrigidas por adequados sistemas de incentivos e de controle. Enfim, para um fechamento meio inspirado, pode-se arriscar em dizer que o mercado é, ao mesmo tempo, uma selva e um espaço libertário, assim como o Estado é, ao mesmo tempo, um Leviatã e um ente civilizatório.
* Este artigo foi originalmente publicado no site do Cofecon.
** Fernando de Aquino Fonseca Neto é doutor em economia pela UnB e presidente do Conselho Regional de Economia de Pernambuco (Corecon – PE).
Comentários
Registre-se ou faça login para comentar.
Leitor
21/10/2013 - 09:38:02