Por Marcus Eduardo de Oliveira

Devem os trabalhadores e consumidores atenderem as necessidades do mercado ou é o mercado que deve assegurar às necessidades de trabalhadores e consumidores? As pessoas devem estar à serviço da economia ou é a economia que deve se pôr à serviço das pessoas? Pela lógica econômica atual devemos considerar que a acumulação de bens leva à satisfação e ao prazer ou a busca pelo prazer e pela satisfação envolvem outras varíaveis? O ritmo econômico atual é sustentável ou já se esgotou? Esse mesmo ritmo econômico caminha para aprofundar a concentração de renda ou para atenuar as gritantes desigualdades sociais e econômicas?

Diante dessas inquietações, percebemos que em termos econômicos sempre prevaleceu a inversão de valores. De um lado busca-se o crescimento econômico, pouco importando se do outro lado esse crescimento irá beneficiar a maioria. Certamente isso apenas contribui para afastar a práxis econômica da busca por uma economia mais solidária e menos desigual.

Nossa premissa básica é a de que os sistemas econômicos devem promover prioritariamente o bem-estar social. É assim que entedemos o primeiro e mais importante objetivo da economia, corroborando, dessa forma, com a análise de Colin Clark quando afirmou que “O objetivo da economia não é a produção de riqueza, mas proporcionar bem-estar aos indivíduos”.

No entanto, o discurso econômico atual se apresenta de forma insensível: prevalece a idéia de que os ganhos devem acontecer no curto prazo, independente se os recursos naturais “responderão” afirmativamente pelo crescimento avançado; independente se atualmente mais de 1 bilhão de pessoas passam fome no mundo (um em cada seis seres humanos passa fome atualmente); independente se a miséria e a indigência grassam a passos largos em várias regiões.

É tão grande a inversão de valores econômicos que as contradições que se apresentam mediante tais inversões podem soar aos mais desavisados como inverdades. Nesse pormenor, muitos são os exemplos de inversões de valores econômicos que respondem, de um lado, pelo crescimento da economia, enquanto, do outro, as condições sociais se deterioram.

Insensibilidade econômica

A nação que mais produz alimentos no mundo, os Estados Unidos, segundos dados do Conselho Nacional Americano sobre a Terceira Idade, constatou, por exemplo que, em 2004, 14 milhões de idosos passavam fome. O PIB mundial rompeu o ano de 2008 superando 60 trilhões de dólares; no entanto, somente devido aos efeitos da poluição do ar (todos os anos são liberadas mais de 25 bilhões de toneladas métricas de dióxido de carbono no ar), a Organização Mundial de Saúde (OMS) relata que três milhões de pessoas morrem a cada ano. Apenas 13 bilhões de dólares por ano (pouco mais de 1 bilhão por mês) seriam suficientes para permitir que os países pobres alimentem seis milhões de crianças que correm o risco de morrer de inanição a cada ano. Entretanto, somente os EUA gastaram na última Guerra do Iraque, sob a administração George W. Bush, o equivalente a quase 1 bilhão de dólares por dia (isso mesmo: quase 1 bilhão de dólares por dia!).

Somente em um ano foram gastos 295 bilhões de dólares nessa guerra estúpida que fez mais de 75 mil mortos. Isso, por sua vez, não “impediu” que a FAO (Fundo para Alimentação e Agricultura da ONU) divulgasse a macabra cifra de que “5 milhões de crianças morrem todos os anos em virtude da fome” – isso equivale, na média, a um óbito a cada cinco segundos.

A cada dia que passa quase 15 mil crianças com menos de cinco anos morrem por fome ou problemas a esta associados que hoje são denominados de “insegurança alimentar”. Isso tudo apesar da agricultura estar produzindo 17% mais de calorias por pessoa, por comparação ao que se produzia há três décadas, e mesmo tendo em conta que a população mundial aumentou 70% nesse período. Anualmente morrem 1,8 milhão de pessoas de diarréias e gastrenterite por consumo de água não potável. Deles, 90% são menores de cinco anos e estão localizados nos países em desenvolvimento. Ora, todos esses exemplos são ou não verdadeiras inversões de valores não só econômicos, mas morais, éticos?

Infelizmente, essas inversões de valores não param nos exemplos acima citados. Segundo o World Military and Social Expenditures, o custo de um míssil balístico intercontinental dos EUA daria para alimentar cinquenta milhões de crianças, construir 160 mil escolas ou ainda abrigar 340 mil centros de saúde. Para cada um dólar que a ONU gasta em missões de paz, o mundo gasta outros 2.000 doláres em guerras e nos preparativos dessas.

De acordo com relatórios produzidos pelos técnicos da UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), o custo de um submarino nuclear forneceria água às regiões rurais a um custo baixo e serviços de saneamento para 48 milhões de pessoas. Ainda segundo essa Instituição, o custo de apenas onze bombardeiros construídos para evitar radares proporcionaria quatro anos ininterruptos de instrução escolar fundamental a 135 milhões de crianças.

No entanto, o modelo econômico praticado por todas as nações desenvolvidas e as que estão em estágio de desenvolvimento não se sensibiliza com o critério social. O que importa é a produção, as vendas, o retorno financeiro, os exorbitantes lucros, a valorização das ações no mercado acionário. Pouco importa que, na outra ponta, o meio ambiente esteja ficando às minguas em troca de uma produção avassaladora e ambientalmente destruidora.

Estudo patrocinado pelas Nações Unidas intitulado Avaliação Ecossistêmica do Milênio, de 2005, informa que ao longo dos últimos 50 anos, a atividade humana esgotou 60% dos pastos, florestas, terras cultiváveis, rios e lagos do mundo. Atualmente, devido as temperaturas mais elevadas cuja responsabilidade recai sobre as emissões de gases do efeito estufa, o derretimento da calota polar das geleiras da Groelândia estão deslizando para o oceano duas vezes mais rápida do que há apenas cinco anos extinguindo a vida de vários ursos polares que estão se afogando. A queima de combustíveis fósseis (carvão, petróleo e gás natural) em veículos, usinas termoelétricas, indústrias e equipamentos de uso doméstico, por exemplo, emite dióxido de carbono, o gás que mais colabora para a intensificação desse efeito estufa.

Relações mais desumanas: os números da concentração econômica

Como a lógica econômica que prescreve o lucro acima de tudo e de todos sempre prevalece, as relações tendem a ficar, por consequinte, cada vez mais desumanas e excludentes. Segundo o Banco Mundial, atualmente 2,8 bilhões de pessoas sobrevivem com menos de US$ 2 por dia. E 1,2 bilhão, com menos de US$ 1 por dia. Dois quintos da riqueza mundial estão concentrados nas mãos de 37 milhões de indivíduos, ou 1% da população adulta segundo estudo compilado no recente livro Personal Wealth from a Global Perspective (Riqueza Pessoal a partir de uma Perspectiva Global).

Desse estudo destaca-se ainda que apenas dois países – Estados Unidos e Japão – concentram 64,3% dos indivíduos entre o grupo de 1% mais ricos do mundo. O Brasil tem 0,6% dos indivíduos nesse grupo, que representam aqueles com patrimônio superior a US$ 512,4 mil.

Entre os 10% mais pobres do mundo, 26,5% estão na Índia, 6,4% na China e 2,2% no Brasil. Os Estados Unidos têm apenas 0,2% de sua população nesse grupo, com patrimônio total inferior a US$ 178.
Os indianos, que são 15,4% da população mundial, detêm 0,9% da riqueza global. Na África, que tem 10,2% da população, está apenas 1% da riqueza mundial. Na outra ponta, a América do Norte, com 6,1% da população mundial, concentra 34,4% da riqueza, enquanto a Europa, que tem 14,9% da população, detém 29,6% da riqueza. O grupo de países ricos da Ásia e do Pacífico, que inclui o Japão, tem apenas 5% da população mundial, mas concentra 24,1% da riqueza global.

O poder das corporações farmacêuticas

A inversão de valores econômicos passa até mesmo pela questão de se evitar a cura de certas doenças em prol dos ganhos exorbitantes das gigantes corporações farmacêuticas. Vejamos, nesse pormenor, o conhecido caso da “casca de bétula”. Sabe-se há séculos que o chá feito a partir da casca de bétula, ou vidoeiro, tem poderes curativos sobre a herpes, por exemplo, além de ajudar na digestão. Mas, como as corporações farmacêuticas domimam o mercado, elas tem sido radicalmente contra medicamentos de baixo custo como as plantas medicinais, em especial, contra a casca de bétula que continua “impedida” assim de ganhar as prateleiras das farmácias.

Na África do Sul o drama é ainda pior. Exatamente 39 gigantes farmacêuticas impedem que esse país importe medicamentos ou os produza a baixo custo para tratar dos aidéticos. Mesmo com uma lei que regulamenta a importação de remédios para esses doentes, aprovada pelo então presidente Nelson Mandela, em 1997, os “grandes monopólios farmacêuticos” entraram, desde essa época, com ação na Alta Corte de Pretória impedindo a aplicação da lei. Para as gigantes do setor farmacêutico não importa a continuidade da vida, o que importa são os lucros. Não é por acaso então que a Aids, na África do Sul, já acometeu quase 5 milhões de pessoas.

O Autor:
Marcus Eduardo de Oliveira é economista e professor universitário.
Mestre pela USP em Integração da América Latina e Especialista em Política Internacional
Autor do livro “Conversando sobre Economia” (ed. Alínea)

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