Brasil não tem nenhuma razão para ter uma taxa de juros real muito maior que 3%, diz Delfim
Apesar de reconhecer o esforço feito pelo Banco Central para reduzir a taxa básica de juros (Selic) para 9,25% ao ano, o ex-ministro da Fazenda Delfim Netto considera a queda insuficiente, por acreditar que o Brasil poderia cobrar taxas reais em torno de 3%, a exemplo do que é feito em outros países.
“O Brasil não tem nenhuma razão para ter uma taxa de juros real muito maior que 3%, que é a taxa de juros do mundo. O Brasil é um país normal. Anormais são os brasileiros”, disse ele, em entrevista à Agência Brasil e ao programa Repórter Brasil, apresentado a partir das 21 horas pela TV Brasil.
Delfim Netto acredita que o Brasil pode ter juros “normais”, principalmente porque, em sua opinião, a crise ajudou a desmistificar o papel dos presidentes de bancos centrais ao redor do mundo. “Quando você contrata um presidente do Banco Central, você pensa que ele é portador de uma ciência. Essa crise mostrou o seguinte: na verdade, isso não é verdade”, afirmou.
Na entrevista, Delfim também creditou ao Federal Reserve (FED, Banco Central dos Estados Unidos) parte da culpa pela crise econômica mundial. “Quem faltou foi o Estado. O Estado é que se omitiu da sua tarefa. Não podemos deixar de acreditar e de reconhecer que o Estado produziu essa crise que está aí. Boa parte dessa crise foi pelo FED não ter observado esses avanços tecnológicos”, disse ele.
Confira trechos da entrevista feita com o economista:
Agência Brasil: Vamos chegar, um dia, a ter juros normais no Brasil?
Delfim Netto: Não tenho a menor dúvida. Todas as teorias estão desmitificadas. Primeiro, porque ninguém mais leva a sério essa ideia de que o Banco Central é portador de uma ciência monetária. Porque o Banco Central é uma contradição em si. Você elege o presidente [da República] com 60 milhões de votos e depois ele escolhe um sujeito que ele pensa que sabe e entrega todo o poder para ele. Nos levantamentos nos Estados Unidos – lá se faz levantamento para tudo – a figura mais importante do governo depois do presidente é o presidente do Banco Central. Ou seja, é justamente aquele no qual você não votou. Quando você vai fazer uma operação do coração, procura o [o médico Adib] Jatene, procura o melhor hospital, o melhor pós-operatório, porque supõe que ele sabe, e ele sabe mesmo mexer naquele negócio. Quando você contrata um presidente do Banco Central pensa que ele é portador de uma ciência. Essa crise mostrou o seguinte: na, verdade, isso não é verdade.
ABr: E o spread bancário (diferença entre os juros que o banco paga aos investidores e o que cobra nos empréstimos)? O presidente Lula tem reclamado que o spread bancário está alto.
Delfim: Acho que ele deveria tomar providências para reduzir o spread.
ABr: E quais seriam essas providências?
Delfim: O Brasil é o país que tem provavelmente a maior tributação de operações financeiras do mundo. E nós construímos um sistema bancário onde a competição é muito duvidosa. Dessa forma, o governo tem muita coisa a fazer: não é apenas reclamar, mas acho que, quando se começa reclamando, já é um bom passo.
ABr: O senhor fala que o spread é um problema antigo. Tem uma solução?
Delfim: É claro que tem uma solução. O Brasil não é um país teratológico, que precisa de uma taxa de juros, como tivemos nos primeiros quatro anos [do governo] de Fernando Henrique Cardoso, de 20% reais ao ano. Isso é uma maluquice total. O Brasil não tem nenhuma razão para ter uma taxa de juros real muito maior que 3%, que é a taxa de juros do mundo. O Brasil é um país normal. Anormais são os brasileiros.
ABr: O governo vai conseguir reduzir os spreads bancários?
Delfim: O spread é consequência da própria operação da política monetária. O Brasil ainda continua com taxas de depósitos compulsórios, que são um instrumento jurássico, muito alto. Na verdade, trabalhou-se, reduziu-se a compensação do sistema bancário. O Brasil ainda teve sorte, porque manteve alguns instrumentos de política pública, como o Banco do Brasil, o BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] e alguns bancos de fomento que foram importantes para superar aquelas dificuldades. E esses bancos não podem ser tudo. É preciso ter um processo competitivo um pouco melhor no sistema bancário brasileiro.
ABr: O fato de termos bancos públicos seria um caminho para reduzir os spreads?
Delfim: Os bancos públicos também têm de obedecer as condições de Basileia [cidade suíça, que é sede do BIS, Banco para Compensações Internacionais]. Eles têm de competir em condições normais. Eles são úteis. Eu, por exemplo, sempre considerei o Banco do Brasil um ‘bancão’. Ele era os meus ouvidos, os meus olhos, os meus braços. Se havia um problema no Rio Grande [do Sul], chamava-se o gigante, que era um gerente famoso do Banco do Brasil em Porto Alegre, e ele, em meia hora, explicava todo o problema, comunicava o que era aquilo e como funcionava e você decidia com ele como resolver. E, quando ele voltava para o Rio Grande, de tarde, já começava a resolver. De forma que aquilo é um instrumento de política pública mesmo, que infelizmente deixou de ser usado. Em minha opinião, é um pensamento equivocado o de que eles não têm um papel. Como é equivocada a ideia de que um banco de desenvolvimento, como o BNDES, não tenha um papel, de que ele viva de subsídios. Subsídio em relação a quê? Com relação a uma taxa de juros em que eles dizem que o mercado funciona. Mas quem faz o mercado? São eles mesmos.
ABr: De que maneira a rodada de negociações entre os países do Bric – Brasil, Rússia, Índia e China – vai influir na economia mundial daqui para a frente?
Delfim: O centro de gravidade da produção do mundo mudou. Os países do Bric hoje representam quase 20% da produção mundial, quando se mede o PPP [sigla em inglês para Paridade do Poder de Compra], de forma que eles têm importância. Essa é uma noção um pouco fluida. As ligações entre eles não são tão estreitas como a gente pensa. Eu vejo agora, por exemplo, que o ponto central dessa reunião é ‘vamos encontrar uma nova moeda para substituir o dólar’. Essa ideia é de 1967, quando presidi a reunião do Fundo Monetário Internacional [FMI] no Rio de Janeiro e foram criados os direitos especiais de saque para substituir o dólar. E não substituíram, porque ninguém é obrigado a comprar o papel americano. Ninguém obriga o chinês a comprar papel americano. O negócio da China só existe para chinês. Quem achar que existe negócio da China para brasileiro vai se dar muito mal.
ABr: O senhor, então, acha que a utilização das moedas dos países não vai ocorrer?
Delfim: É voltar para o Século 16 até encontrar de novo um denominador comum. Na verdade, eu acho o seguinte: os preços são fixados nessa moeda internacional. O dólar flutua, tem inconvenientes. Mas ninguém é obrigado a usar o dólar. Por que, com o mundo caindo aos pedaços, todo mundo correu para comprar papel do Tesouro americano? Qual é a razão pela qual o mundo se refugiou nos Estados Unidos, com os Estados Unidos caindo aos pedaços? A única razão para isso é que, no primeiro governo americano depois da Guerra Civil, Hamilton [Alexander Hamilton, secretário do Tesouro dos Estados Unidos] e Washington [George Washington, presidente dos Estados Unidos] tiveram que decidir o que fazer com a dívida das colônias, e o Hamilton disse: ‘Nós vamos pagar tudo’. Então, era a garantia de que as patifarias seriam moderadas.
ABr: A economia mundial sofreu esse baque muito por falta de regulação no mercado. O presidente [Barack] Obama disse que vai tentar regularizar o mercado. O senhor acredita que essa tarefa vai ser difícil? Em que ele deve mexer para melhorar a economia?
Delfim: A economia sofreu uma grande evolução a partir de 2000 e 2002, que é o caso brasileiro. Já esquecemos que, em 2002, nós falimos. Fomos ao Fundo Monetário buscar US$ 40 bilhões para poder fazer a eleição. Essa é que é a verdade. Quando todo mundo pensava que o Lula [então candidato à Presidência] era louco e que ia fazer uma tragédia. Hoje estamos numa situação muito confortável. É que o mundo se expandiu. Essa expansão do mundo foi em grande dose facilitada por esses instrumentos maléficos de crédito. Então você não pode jogar a criança junto com a água do banho. Você vai ter de aproveitar as inovações financeiras e regulá-las. Aqui é que há uma contradição: ‘Nós estamos precisando de mais Estado’. Quem faltou foi o Estado. O Estado é que se omitiu da sua tarefa. Não podemos deixar de acreditar e de reconhecer que o Estado produziu essa crise que está aí. Boa parte dessa crise foi pelo fato de o FED não ter observado esses avanços tecnológicos, os instrumentos financeiros descobertos. Uma coisa interessante é que esses instrumentos foram descobertos por uma combinação trágica de economistas e físicos. Economistas que pensavam que eram matemáticos e físicos desempregados. São os ‘econofísicos’, que construíram equações diferenciais, que diziam que eram capazes de medir risco. O interessante é que o sujeito que construiu a equação dizia: ‘Ela não mede o risco’. Mas os bancos de investimento conseguiram vender para a gente que elas [equações] mediam o risco. E essa crise é produto de uma ideia generosa. Quando acabou a crise de 2001, inventou-se a seguinte ideia: ‘Temos que vender casa para quem não pode pagar’. E foi o que nós fizemos. Minha opinião é a seguinte: Vai, sim, voltar a uma regulação um pouco melhor. Os bancos centrais vão ter que cumprir sua missão um pouco melhor e, nesse caso, eu critico a ação de uma política monetária do banco. Mas, com alegria, reconheço que o Banco Central é muito eficaz em matéria de fiscalização aqui no Brasil. Desse ponto de vista, acho que o Banco Central brasileiro é uma demonstração de eficácia. Depois do Proer [Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional, criado em 1995 para recuperar instituições financeiras], ele manteve a coisa bem arrumada. Não se tem aqui alavancagens extraordinárias. Os bancos não entraram nesses derivativos tóxicos, a não ser um ou outro. Nem foi por virtude. Acho que podia ter lucro aqui muito melhor do que com os derivativos tóxicos. Havia o papel do governo sem risco, efetivamente.
ABr: O emprego, que é outro problema no Brasil e no mundo, vai ser reduzido no país?
Delfim: À medida que voltar o crescimento, recupera-se o emprego. O emprego está ligado ao crescimento e, mais do que isso, o emprego está mudando no mundo inteiro. O trabalho não é mais uma mercadoria, não adianta estar com essa ilusão. O trabalho é a forma de expressão do homem. Essa é a grande verdade. Essa é a grande mensagem que o grande Carlos [Karl Marx, filósofo alemão] deixou para todos nós. Esse mundo está mudando mesmo. Hoje, cada trabalhador vai ter que ser um instrumento de uso múltiplo. E vai se ajustando a essa realidade. O emprego, como nós conhecemos, está morrendo. Está nascendo um outro mundo em que o emprego tem outra natureza.
Elaine Patricia Cruz e Florestan Fernandes Jr.- Agência Brasil e TV Brasil
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